Cronica e arte
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Guimarães Rosa e
Manuelzão: a amizade
de oito dias que gerou
uma obra de 60 anos
18/07/2016 18h24
Andrequicé (MG)
Léo Rodrigues - Enviado especial
Lá se vão 60
anos desde
que o sertão
mineiro
ganhou o
mundo pela
literatura de
Guimarães
Rosa. Mas
Grande
Sertão:
Veredas e Corpo de Baile, publicados em 1956,
podem na verdade ter nascido quatro anos antes,
quando o escritor mineiro organizou uma boiada
para entender melhor a cultura sertaneja. Nessa
aventura, Guimarães Rosa registrou lugares,
palavras, expressões e personagens. Entre tantos
vaqueiros que se juntaram à empreitada, um pode
ter sido definitivo para as obras roseanas:
Manuelzão.
A cruzada teve origem na Fazenda Sirga, a 60
quilômetros de Andrequicé, distrito de Três Marias
(MG), onde Manuelzão viveu seus últimos 20
anos. Dez dias depois, o ponto de chegada foi
uma fazenda em Araçaí (MG), município vizinho a
Cordisburgo (MG), cidade natal de Guimarães
Rosa.
A revista Cruzeiro, dos Diários Associados,
publicou um relato da expedição na reportagem
Rosa e seus vaqueiros, em 21 de junho de 1952.
Nas fotos, Manuelzão está entre o grupo. Em sua
homenagem, o escritor mineiro escreveu o conto
Uma Estória de Amor, do livro Corpo de Baile, que
posteriormente foi desmembrado em três volumes:
Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no
Pinhém e Noites do Sertão.
Manuelzão é o protagonista do primeiro volume:
após a morte de sua mãe, o vaqueiro resolve
atender a um pedido dela para que fosse
construída uma capela em suas terras e a obra é
inaugurada com uma grande festa. Guimarães
Rosa mescla realidade e ficção: assim como o
personagem, a capela existe e ao seu lado está o
túmulo de sua mãe. Já a festa é romanceada.
Capela construída por Manuelzão em homenagem
a sua mãe. A igrejinha aparece no conto
Manuelzão e Miguilin, de Guimarães Rosa
Capela construída por Manuelzão em homenagem
a sua mãe. A igrejinha aparece no conto
Manuelzão e Miguilim, de Guimarães RosaLéo
Rodrigues/Agência Brasil
Das páginas do conto, Manuelzão se tornou talvez
o principal embaixador da obra roseana. A
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) o
homenageou criando o Projeto Manuelzão,
destinado à recuperação do Rio das Velhas. O
vaqueiro foi a diversos programas de televisão e
atuou em uma cena do capítulo inaugural da série
Grande Sertão: Veredas, levado ao ar pela Rede
Globo em 1985. Morto em 1997, seu enterro
mobilizou centenas de pessoas.
Parte desse sucesso é relatado em detalhes pelo
jornalista Pedro Fonseca. Sobrinho da última
mulher de Manuelzão, ele se afeiçoou ao “tio
torto”, como se diz em Andrequicé. Fonseca
garante que Uma Estória de Amor é apenas a
parte mais evidente da influência do vaqueiro na
obra roseana. "Ele permeia toda a obra de
Guimarães Rosa. Ele também está em Noites do
Sertão e no Grande Sertão: Veredas. O Riobaldo
é o Manuelzão, é bem nítido”, analisa Pedro.
Quem conheceu o vaqueiro se surpreende com a
exatidão da descrição do personagem por
Guimarães Rosa, dando a impressão de um longo
convívio, o que não aconteceu de fato. “A
convivência deles foi de uns oito dias e nunca
mais se viram. Mas uma convivência intensa, dia e
noite”, diz Pedro Fonseca.
Mesmo por poucos dias, o sobrinho de Manuelzão
diz não estranhar a atenção destacada que o tio
recebeu de Guimarães Rosa em meio a um bando
de vaqueiros. Segundo o jornalista, ele não passava
despercebido. “Em 1989, eu apoiei o Brizola na
campanha para presidência da República. O José
Maria Rabelo, que era o presidente do PDT em
Minas Gerais, me perguntou se eu poderia levar o
Manuelzão para um evento com o Brizola em Belo
Horizonte. Eu levei e foi uma confusão. Muita gente
achou ruim que ele apareceu mais que o Brizola.
Era assim: onde ele ia, ele era o astro”, relata.
Em Andrequicé, Manuelzão é conhecido como o
cidadão mais ilustre que viveu no distrito. Em torno
dele e de Guimarães Rosa se organiza anualmente
a Semana Cultural Festa de Manuelzão, cuja edição
de 2016 terminou nesse domingo (17). Famoso
contador de casos, o vaqueiro está em fotos nas
paredes de praticamente todos os bares do
pequeno distrito. “Ele era uma pessoa humilde,
contadora de casos. Mesmo a figura dele rodando o
mundo, ele não se importava com dinheiro. Se
convidavam Manuelzão pra um evento em Brasília
e perguntavam quanto ele cobraria, ele respondia:
'nada, estou indo passear'. Manuelzão deixou um
legado para Andrequicé”, diz Márcia Alves, dona de
um dos bares que homenageiam o vaqueiro
personagem.
Essa disponibilidade de Manuelzão foi explorada
por muitos, segundo o jornalista Pedro Fonseca.
“As pessoas convidavam ele para eventos de
empresas onde ele era o astro, lucravam com sua
aparição e lhe pagavam apenas uns trocados.”
O Memorial Manuelzão, construído na casa onde
ele morou em Andrequicé, reúne pertences
pessoais e documentos sobre sua relação com
Guimarães Rosa. Assim como o escritor, ele
também tem frases marcantes que são citadas
pelos moradores: “Não tenho medo da morte
porque sei que vou morrer. Tenho medo do amor
falso, porque mata sem Deus querer”, dizia sempre.
Livro
Com a autoridade de quem conviveu por 40 anos
com Manuelzão, o jornalista Pedro Fonseca decidiu
lançar em 2007 o livro O xale de Rosa, para decifrá-
lo para além da obra roseada. “No final da vida, ele
virou o personagem. Deixou de ser o cidadão e
virou o personagem. Mas foi também o que deu
uma sobrevida a ele. Ele vivia pelo sucesso. Mas eu
me interessava pelo cidadão Manuelzão. Não o
personagem.”
Um fato sobre Manuelzão intrigava Pedro: ele não
compartilhava as histórias de Dom Silvério (MG), na
região mineira da Zona da Mata, onde nasceu. “Ele
não falava nada sobre essa época. Dizia que não
tinha pai, só mãe. Quando se fixou na fazenda
próxima a Andrequicé, levou a mãe para morar com
ele, mas não tinha contato com o restante da
família. Ficou 60 anos sem visitar sua cidade e
quando o fez, foi sozinho, meio escondido”, conta o
jornalista. Manuelzão deixou sua cidade natal com
20 e poucos anos, no início da década de 1930. "O
sonho dele era se juntar ao bando de Lampião.
Quando ele estava em Pirapora (MG), ele recebeu
a notícia de que Lampião tinha sido morto. Então,
seguiu sua vida no sertão mineiro".
Para escrever o livro, Fonseca foi à cidade de
Manuel Nardi, como se chamava Manuelzão, e
descobriu que o sobrenome era de uma família
grande e nobre na região. Na cidade, o jornalista
passou a investigar que razões levaram Manuelzão
a abandonar uma vida relativamente confortável
para se embrenhar pelo sertão. Ainda no desafio de
decifrar o vaqueiro, o jornalista organizou uma
expedição para refazer o percurso trilhado por
Guimarães Rosa e seus vaqueiros, respeitando os
mesmos pontos de parada. “Nós guiamos 198
cabeças de gado. Eu precisava vivenciar essa
experiência para entender como é essa vida de
vaqueiro.”
Edição: Luana Lourenço
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