Cronica e arte
CRONICA E ARTE CNPJ nº 21.896.431/0001-58 NIRE: 35-8-1391912-5 email cronicaearte@cronicaearte.com
Rua São João, 869, 14882-010 Jaboticabal SP
Livro resgata trajetória da lenda do
samba que sintetizou cultura negra
12/02/2017 11h27Rio de Janeiro
Isabela Vieira - Repórter Agência Brasil // foto: Encontro de Clementina de
Jesus e João Bosco no Projeto Pinxuiguinha, da Funarte, que circulou show
de duplas de artistas populares pelo país. Acervo-Funarte.
"O momento de
Clementina foi
aquele,
surpreendendo todo
mundo, já uma
pessoa com mais de
60 anos de idade,
fazendo sucesso. Não
conheço ninguém que
tenha feito isso, mas
o que gostaria mesmo
é que Clementina tivesse sido descoberta há mais tempo".
As palavras são do poeta Hermínio Bello de Carvalho, que lançou a cantora
Clementina de Jesus , aos 64 anos, no espetáculo Rosa de Ouro, em 1965.
O produtor conta que, naquela época, encontrou Clementina cantando em
uma taberna, em um momento de descontração. Até então, ela trabalhava
como empregada doméstica de uma família no Rio de Janeiro. Este ano,
2017, a morte da cantora completa três décadas e em fevereiro, se viva,
ela teria completado 116 anos.
Guardiã e herdeira da cultura musical afro-brasileira, dona de uma voz
potente, Clementina gravou 12 discos de sucesso nos tempos da bossa
nova e o do iê-iê-iê. Esteve em programas de TV, rádios, fez show pelo país
e fora dele. Na França, cantou no Festival de Cannes e, no Senegal, teve de
voltar ao palco quatro vezes, muito aplaudida. O jornalista Sérgio Cabral,
que testemunhou a cena, no Festival Internacional de Arte Negra relembra
relembra que as pessoas queriam tocá-la.
A força de Clementina e a empatia que conquistava plateias vinha de suas
cordas vocais, mas também do repertório que acumulou ao longo de toda
sua vida. Ela era síntese da mistura entre a herança africana e a cultura
religiosa cristã. Gravou canções que sabia de memória, versos que ouvia
desde criança, misturando cantos africanos, jongos, aos sambas de partido
alto.
Nascida no interior do estado do Rio, em Valença, no Vale do Paraíba, filha
da primeira geração de descendentes de africanos libertados da
escravidão, Clementina desde pequena ouvia a mãe cantar saberes
ancestrais da cultura banto enquanto lavava roupas. O pai, um grande
violeiro e capoeirista, completava a formação musical da filha. "O meu pai
e minha mãe gostavam muito de cantar. Meu pai, então, era um dos
primeiros violeiros de Valença, cantava muito bem, e minha mãe cantava a
moda dela, aí, eu aprendi", disse Clementina em entrevista à Rádio MEC.
Clementina, ou Quelé, apelido que ganhou na infância, cantou desde
pequena, na igreja, em festas religiosas, onde chegou a treinar pastoras,
na casa das tias do samba, já no Rio, e nos corsos que deram origem às
escolas de samba. Foi portelense, antes de entrar na Mangueira para
nunca mais sair, por causa do amor ao marido que lhe acompanhou por 30
anos.
Referência no mundo do samba
Foi apresentada profissionalmente ao lado de Paulinho da Viola, na época,
com 22 anos, no programa Rosa de Ouro, e tornou-se referência para
artistas como Milton Nascimento -- que gravou com ela Escravos de Jó, em
1973 -- Clara Nunes, Zeca Pagodinho e Beth Carvalho."Tomei a decisão de
ser cantora de samba depois que ouvi Clementina. Quando a avistei no
palco, a entendi perfeitamente, entendi o que ela representava", contou
Beth, que lhe dedicou seu primeiro disco.
Percussionista pernambucano Naná Vasconcelos, que morava na França e
passava um curta temporada no Brasil no início da década de 1970 e
participou do LP Marinheiro Só, de Clementina. disse que "ela é a prova
que a África é a espinha dorsal da nossa cultura", antes de falecer em
2016, vítima de um câncer de pulmão, aos 71 anos. Para os críticos dos
jornais, a importância dela para o Brasil foi a mesma que a das cantoras de
jazz e blues norte-americanas.
Todas essas histórias em mais detalhes sobre os bastidores do mundo do
samba entre 1960 e 1987 são apresentadas a novas gerações no recém-
lançado livro "Quelé, a voz da cor - biografia de Clementina de Jesus, dos
jovens jornalistas Janaína Marquesini, Luana Costa, Raquel Munhoz e
Felipe Castro. A pesquisa deles sobre a artista, com várias lacunas em suas
biografias, começou com um trabalho de conclusão de curso na faculdade
e depois de muitas idas e vindas ao Rio -- um esforço de pesquisa que
levou seis anos-- terminou em uma publicação de 363 páginas, incluindo
vasta bibliografia e índice onomástico, pela editora Civilização Brasileira.
"A turma que fez este trabalho não escreveu apenas uma biografia", diz,
em um trecho da orelha do livro, o escritor e historiador Luiz Antonio
Simas. "O que estas páginas apresentam é um relato fundamental para se
contar a história da nossa música e dos saberes africanos redimensionados
no Brasil", completa, um dos principais estudiosos da cultura do samba.
Clementina de Jesus terminou a carreira aos 86 anos, depois das gravações
de o Cantos Escravos, em 1982, junto com outros músicos. Apesar da
fama, morreu pobre como tantos artistas negros tão importantes para à
música brasileira, como Pinxiguinha e Heitor dos Prazeres.
Edição: Valéria Aguiar